ARTE PELA ARTE
Aracaju, 22 de novembro de 1935.
Jorge Amado.
Hora espessa já chamou um poeta ao momento que
atravessamos. E os poetas têm o instinto divinatório. Hora trágica, dolorosa,
momento de dúvidas e angústias para todos os intelectuais.
O mundo atravessa um momento essencialmente
político. E é conhecida a velha chapa que colocava o artista, o intelectual, o
homem de letras, à margem dos acontecimentos políticos. É o conceito célebre da
“arte pela arte”. O artista trancado na sua clássica torre de cristal que quase
sempre não passava de um quarto mal arrumado onde a miséria imperava, a
cabeleira romântica caindo sobre os ombros, não se interessava pelos
acontecimentos que se desenrolavam cá embaixo no velho mundo de homens sem
senso artístico, de homens que lutavam no quotidiano de cada dia pelas
renovações políticas e sociais. O conceito de “arte pela arte” desumanizava o
artista. Ele não trabalhava em função da humanidade que se locomovia na terra,
a terra das ruas. A realidade era uma coisa que não lhe interessava. O cristal
de sua torre tapava-lhe os olhos para o espetáculo dos homens apressados ou
tímidos que viviam os poemas, os romances, as epopéias diárias. Fora da terra,
longe da humanidade, o artista era o contrário do político. Eram extremos. É
certo que alguns homens não acreditavam na verdade do conceito célebre. É certo
que alguns homens fizeram a sua arte em função da humanidade e da realidade.
Mas ninguém desconfiou sequer que se tratava de gênios. Ninguém quis ver em
Shakespeare um descortinador de toda a vida da Inglaterra de seu tempo. Então
não passou ele de um teatrólogo vulgar, amado pelas massas, não aceito pelas
elites. Foi preciso que se passassem os séculos para que a humanidade visse em
Shakespeare um gênio, algo mais que um teatrólogo de mérito discutível. Só a
massa, que como os poetas têm o instinto divinatório, compreendeu o gênio
inglês. E como todos os gênios, Shakespeare foi um precursor. Acho que não
ofenderei os ouvidos de ninguém se afirmar que ele foi um precursor da literatura
de classes.
Essas raras exceções que não foram compreendidas,
esses raros artistas que tiveram o senso político, que olharam para a
humanidade das ruas, dos botequins, das tavernas, dos campos, para a marinhagem
dos navios que cruzam o grande mar misterioso, como esse Camões que vale por
uma raça, não tiveram o aplauso dos homens intelectuais de seu tempo, porque
não cabiam dentro do conceito de “Arte pela Arte”.
Essa desumanização da literatura acima da vida, de
colocar o artista à margem dos acontecimentos, dominou muito tempo o conceito
de arte e ainda hoje gritam por ele todos os que querem combater a literatura
interessada, como se hoje houvesse alguma literatura que não fosse interessada.
“Arte pela Arte”, bela frase, sem dúvida, para os
amantes dos paradoxos à Wilde, esses velhos literatos que pregam a morte pela
tuberculose aos vinte anos como preceito estético, literatos que, para nós,
filhos de uma hora angustiada, geração essencialmente política, não tem sentido
algum, não nos interessam mais que os carros de bois sentimentais que ainda
esperam os automóveis para uma aposentadoria decente.
Oscar Wilde é bem o símbolo, é bem o maior
representante de todos esses intelectuais desumanizados e inúteis. É o maior de
todos eles e hoje em que nos interessa Oscar Wilde, que, no entanto, está tão
próximo de nós pela medida do tempo! Excetuando alguns dos seus poemas,
exatamente aqueles que a dor humanizou, aqueles que fugiram ao conceito de
“arte pela arte” para se tornarem símbolos da dor e da miséria de uma classe de
homens, dos artistas, só interessa em Wilde a sua vida escandalosa que é pacto
de comentários dos alunos internos de colégios de padres, dos rapazolas de vida
sexual regrada e difícil, que se interessam pelo artista inglês como se interessam
pelos livros baratos de pornografia. Aquele que quis ser o romancista em Oscar Wilde
desapareceu. O que foi ele? Um boneco que se retratou em diversos bonecos. Onde
está a vida dos heróis de Dorian Gray?
Símbolo de um conceito, Oscar Wilde acreditou no
paradoxo, na mentira, podemos dizer, de “arte pela arte”. Fez dessa frase a
norma da sua arte e mesmo a norma da sua vida. Não é de admirar. Gênio falso,
ele amava as frases, ele adorava a forma. E a forma é o reservatório estanque
de todos aqueles que são capazes de criar. Estendendo o conceito, de Oscar
Wilde, símbolo, a todos aqueles que acreditam na mentira da frase-norma,
podemos dizer que nada nos deixaram, que nada nos legaram, que não foram úteis
nem à beleza sequer, porque não pode haver beleza fora do humano, não pode
haver deformação artística que produza beleza, que seja obra-de-arte, se essa
deformação não se basear na realidade do quotidiano dos homens.
Tomando Oscar Wilde como exemplo, vejamos os heróis
dos seus romances. O que se requer de um personagem de romance é que ele tenha
vida, que seja humano, que o seu drama, a sua tragédia, a sua comédia, o que
quer que seja a sua vida, tenha o dom de nos comover e nos fazer chegar mais
perto da humanidade. Nada disso encontramos nos personagens “arte pela arte” de
Wilde. E quando digo Wilde, eu tomo como símbolo de toda uma classe de
artistas. O que encontramos nestes personagens é belas frases, muitas delas sem
sentido, são paradoxos rutilantes, são trabalhos de forma, feitos de propósito
para encantar literarelhos desocupados que filam cigarros e café.
É preciso ter a coragem de negar a beleza desses
heróis artificiais. A falsificação da vida, a artificialização do homem para
servir a um conceito, não pode ser beleza. Aquilo que costumam chamar em Oscar Wilde de Luta,
aquilo que nele é ou qualquer reação contra a hipocrisia de uma Inglaterra
pervertida e falsamente religiosa, foi uma luta inútil porque ele não foi
buscar suas armas como Shakespeare, como o autor das Viagens de Guliver ,
como Poe, em reação aos Estados Unidos, na realidade. Esses deformaram a
realidade. Esses deformaram a realidade para criar a beleza, para lutar contra
uma sociedade falsa e cheia de preconceitos. Tirou de si e dos outros homens a
humanidade de seus livros, humanidade que atravessou os séculos e vive ainda
hoje, Oscar Wilde e os “arte pela arte” começam por criar de si um ser
artificial e literário e a imagem deste ser que nada tinha de humano
construíram os seus bonecos, fizeram a sua deformação artística. Se um homem a
mover um boneco, a falar por ele, não convence as crianças sequer, o que dizer
de um boneco a mover um boneco?
Os primeiros foram criadores, escreveram para os
homens, mostraram à humanidade a beleza. Os últimos escreveram para bonecos,
para uma humanidade que não é a nossa, escreveram para esses meninos que lutam
contra a cultura e contra o útil.
Se quisermos ir mais adiante chegaremos com
facilidade a negar por completo este conceito que colocava o artista na torre
de cristal. A literatura nunca deixou de servir a uma classe. O conceito que
era fruto da vaidade dos intelectuais, que os colocava acima das competições
humanas, foi sempre de uma falsidade desoladora. O artista e em particular o
romancista nunca deixaram de servir a uma classe.
O intelectual fora da humanidade, fora dos anseios,
dos desejos, das lutas dos homens, não pode existir, porque a literatura existe
em função da humanidade.
Publicado em O Estado de Sergipe Ano III – Nº
773
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