quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

Cinco Poemas de Nicanor Parra

ADVERTÊNCIA AO LEITOR

O autor não responde pelos incômodos que possam causar seus escritos.
Apesar dos pesares
o leitor deverá dar-se sempre por satisfeito.
Salebius, que além de teólogo foi um humorista consumado,
depois de ter reduzido a pó o dogma da Santíssima Trindade
será que respondeu por sua heresia?
E se chegou a responder, como é que fez!
Em que forma desbaratada!
Apoiando-se em que cúmulo de contradições!
Segundo os doutores da lei este livro não deveria publicar-se:
a palavra arco-íris não aparece nele em parte alguma,
menos ainda a palavra dor,
a palavra torquato.
Cadeiras e mesas é que aparecem a granel,
Ataúdes!, utensílios de escritório!
o que me enche de orgulho
porque, no meu modo de ver, o céu está caindo aos pedaços.
Os mortais que leram o Tractus de Wittgenstein
podem bater com uma pedra no peito
porque é uma obra difícil de encontrar-se:
mas o Círculo de Viena foi dissolvido faz tempo,
seus membros dispersaram sem deixar rastro
e eu decidi declarar guerra aos cavalieri della luna.
Minha poesia pode perfeitamente não levar a parte alguma:
“os risos deste livro são falsos!”, argumentam meus detratores,
“suas lágrimas, artificiais!”
“Em vez de suspirar, nestas páginas a gente boceja”.
“Dá patadas como criança de colo”.
“O autor faz-se entender pelos espirros.”
De acordo: convido-os a queimar vossas naves,
como os fenícios pretendo criar meu próprio alfabeto.
Então, por que molestar o público?, perguntarão os amigos leitores:
“Se o próprio autor começa desprestigiando seus escritos,
que se pode esperar deles!”
Cuidado, eu não desprestigio nada
ou, melhor dizendo, exalto meu ponto de vista,
vanglorio as minhas limitações
ponho nas nuvens minhas criações.
Os pássaros de Aristófanes
enterravam suas próprias cabeças
os cadáveres de seus pais
(cada pássaro era um verdadeiro cemitério voador).
No meu modo de ver
chegou a hora de modernizar esta cerimônia
e eu enterro minhas plumas na cabeça dos senhores leitores!

***

A MONTANHA RUSSA

Durante meio século
A poesia foi
O paraíso do bobo solene.
Até que cheguei eu
E me instalei com minha montanha russa.
Subam, se quiserem.
Claro que não me responsabilizo se descerem
Botando sangue pela boca e pelo nariz.


***
A SORTE

A sorte não ama a quem a ama.
Esta pequena folha de louro
Chegou com anos de atraso.
Quando eu a queria
Para me tornar querido
De uma dama de lábios violeta
Me foi negada várias vezes
E agora me dão quando estou velho.
Agora que não me serve para nada.

Agora que não me serve para nada.
Lançam-me a folha ao rosto
Quase
         como
                 uma 
                       pazada
                                 de
                                     terra...


***

PAI NOSSO

Pai nosso que estás no céu
Cheio de todo tipo de problemas
Com o cenho franzido
Como se fosses um homem vulgar e comum
Não penses em nós.
Compreendemos que sofres
Porque não podes consertar as coisas.
Sabemos que o Demônio não te deixa tranquilo
Desconstruindo o que constróis.
Ele se ri de ti
Mas nós choramos contigo:
Não te preocupes com suas risadas diabólicas.
Pai nosso que estás onde estás
Rodeado de anjos desleais
Sinceramente: não sofras mais por nós
Tens de perceber
Que os deuses não são infalíveis
E que nós perdoamos tudo.


***

AGNUS DEI

Horizonte de terra
astros de terra
Lágrimas e soluços reprimidos
Boca que cuspe terra
dentes moles
Corpo que não é mais que um saco de terra
Terra com terra — terra com minhocas.
Alma imortal — espírito de terra.
Cordeiro de deus que lavas os pecados do mundo
Diz-me quantas maçãs existem no paraíso terrestre.
Cordeiro de deus que lavas os pecados do mundo
Faz-me o favor de dizer-me que horas são.
Cordeiro de deus que lavas os pecados do mundo
Dá-me tua lã para eu fazer um suéter.
Cordeiro de deus que lavas os pecados do mundo
Deixa-nos fornicar tranquilamente:
Não te imiscuas nesse momento sagrado.

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