segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

Hinário de Aquário

Poema de André Monteiro


I
não farei da adolescência divã para a minha morte.
do espírito, recolho o véu discreto da Ilusão.
no campo onde vai a vida,
o sol nasce para todos,
mas a sombra é para quem a enxerga.
não quero ser caolho em terra de cego,
mas ter as mãos decididas e os olhos puros.
em nada sou perfeito.
a dúvida é um abraço que me encarna ao medo.
quando ponho as unhas entre os dentes
para roer seu segredo,
provo o silício da ânsia
- não há silício no silêncio.
agora há pólen em meus dedos,
e não sei é sujeira ou banquete
para a minha Grande Fome,
fruto do insaciável tormento de querer tudo,
e tudo quero, e raro duro
num prato mais do que vinte minutos.
meu tempo é um navio aportado no Amanhã.
por isso, vivo a correr, 
com medo de esperar demais e perder tempo,
e antes de chegar,
canso, 
pois só corro na urgência ou na ânsia de partir.
ficar não é o meu forte.
carrego na atenção cada passo que levanto,
guardando o choque do piso contra as solas
- para onde, pergunto sempre,
e o mais é subir no ônibus,
cara fora da janela,
até o motorista pedir para que eu volte para dentro
(na cidade, tudo vai com pressa:
na ida ou na volta,
vive-se como quem morre).
não vou adiar a vida para o próximo verão.
as nuvens são agora.
o pulso do desejo irrompe na lâmina aérea da Noite,
e o sangue corre por meus braços claros,
dentro dos olhos vermelhos,
dentro de cem mil nervos torcidos de razão e cansaço.
agora é a partida,
a começar pela calma de levantar da cadeira e lavar o rosto,
com a água e seus sabres lacerando o pensamento,
a loção de pêssego perfumando a pele,
a lâmpada do banheiro incandescendo
o espelho enorme onde viça a existência,
as flores brancas costuradas na toalha verde e felpuda,
o rosto enxuto:
esta é a minha vida.
nos cabelos, 
aposto uma tesoura daqui pro fim do ano
(talvez resista,
não sei)
não farei promessas antes de partir.
descalço, habito todos os rastros.
ninguém caminhou por mim.
descalço, examino tudo quanto me é possível reconhecer
(cedo, aprendi os instrumentos de guia da coruja,
a exploração da garça,
com seu longo pescoço de caça e seu porte distinto).
um longo ensaio é meu corpo nu.
o ato de se vestir é um eterno improviso deste espetáculo chamado Quarto, 
onde deito os hábitos solares e noturnos.
então, com calma, calço os sapatos,
cobrindo meus pés com talco
e meias macias.
na hora do cadarço,
em vez do destro comum,
sou canhoto:
mudar de hábito é um esforço
além do silêncio das pedras
(e descalço, andei sempre a chamar pelas pedras).
estou pronto.
II
vai o meu corpo sem asas pelos Montes das Cruzadas,
adestrando os mimos da primeira infância,
crescidos à sombra das mães:
adeus, vida que poderia ser!
os ventos da idade correm por dentre os ouvidos
como Pégasos coloridos relinchando na urze do Espírito, 
guia andrógino das nuvens e da terra
onde a estrada é púrpura e meus pés são de cúrcuma!
eu caminho e vai surgindo um rastro amarelo no chão,
um cheiro forte de gengibre no ar,
eu caminho,
e as abelhas passeiam pelo crescimento silvestre das herbáceas,
e os beija-flores tecem seu ninho na página superior de uma folha rígida,
usando unicamente material sedoso e fofo, 
sem qualquer ornamento exterior, 
a não ser teia de aranha,
e uma mosca está prestes a servir de banquete para as quelíceras de uma armadeira,
quando, 
súbito, 
sobem cem enxames, em frenesi, espalhando pólen por toda a cidade,
e a cidade tomba, redenta pelas trompas celestes a anunciarem o Crepúsculo,
e a cidade enlouquece, tomada pelo calor do verão, 
e as abelhas giram, apopléticas, num ciclone orquestrado pelos beija-flores,
e as rajadas rasgam a teia e arrastam a armadeira e a mosca para fora da festa,
e os homens tocam tambores e oboés e liras prateadas,
e as mulheres cantam Herr Mannelig sob a lua de Ártemis,
e a crianças dançam, dançam contentes,
com os pés descalços e as mãos meladas de terra,
invocando o arco e a flecha de Órion,
brilhante guerreiro da Noite,
e a Noite rege, estrelada, a partitura lilás da Emoção, 
árvore guardada pelo dragão centésimo da Inteligência.
ó, Atlas, titã do firmamento, dai-me a Primavera desta árvore!
a ti, não direi que sou suficiente, 
mas dois ombros são o começo para poder suportar o mundo.
a lucidez é um alvo, meu pensamento é um arco, e meu desejo, uma flecha!
vai e diz a palavra Destino ao dragão e suas cem cabeças transformar-se-ão em setas!
quando voltares, os céus estarão seguros comigo, ainda que eu esteja farto de segurá-los.
não contarei mentiras: os céus são teu trabalho.
basta que voltes e sobre teus ombros retornará a sustentação celeste;
quanto a mim, posso fazer-te massagens mil, 
pois, entre meus dentes, a Primavera será absoluta.
III
hoje, sou farto o suficiente para ouvir um não e florir.
a Primavera é em mim a colmeia selvagem onde o Inverno canta sua água triste,
e não mais serão minhas lágrimas uma âncora no oceano das horas.
as nuvens são minha casa, Pégaso é meu mestre de carruagem,
e se o Leão do Monte é meu trabalho,
dele, levarei as garras;
da Hidra, o hálito veneno;
da Corça, a incansável rapidez;
do Javali, o seu berro;
de Hefesto, o címbalo de bronze;
de Áugias, a água dos rios que limpou os estábulos;
do Touro, a furiosa beleza;
de Diómedes, claro, os cavalos;
das Amazonas, as cidades florescentes;
de Hélios, a Taça de Ouro;
do Jardim das Hespérides, as Hespérides
e de Hades, as sombras,
mas não tenho pai olímpico,
não fui perseguido por deusa,
não estrangulei serpentes ao nascer
nem mamei no seio original da Via Láctea;
não atirei meus filhos ao fogo,
mas sofro de ataques de loucura,
nenhum Oráculo me ordenou Doze Trabalhos,
mas desci ao inferno,
não viajei com os Argonautas,
mas aprendi com o Pirata
a separar as colunas
para abrir um Estreito;
não salvei fígado de titã ou homem algum,
não conquistei reino algum
nem desposei a filha de um rei,
mas matei alguns gigantes;
não fritei numa pira funerária de árvores,
nem herdei princípios de imortalidade:
não sou Hércules de história alguma.
agora, o céu inteiro é uma estrada para o esplendor.
agora, minha vida é uma janela onde pousa a Coruja
para trazer o recado:
deitar é tarefa fácil quando se está com sono,
difícil é viver no pesadelo a rara nobreza do sonho;
chorar é tarefa fácil quando acontece a perda,
difícil é cuidar da terra sem esperar pelo ouro;
correr é tarefa fácil quando se encontra o perigo,
difícil, para quem não é Buda, é sentar no fogo.
subis ao alto dos Montes e esperai.
o áscio em tuas mãos é apenas o começo.
A Verdade é um cavalo azul.


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