quinta-feira, 11 de fevereiro de 2016

Odes ao Cinza

Poema de Alberto da Cunha Melo

In: Dois Caminhos e uma Oração, A Girafa Editora


I

Tempo bom é tempo nublado
e de chuva, dias inteiros;
sangrando aqui muitas barragens,
enchendo ali muitos barreiros,

e dos raios de sol, ausentes,
depois de inchadas as sementes,

gigantescas sombras das asas
de anjos guiando as frente frias
sobre as lavouras, sobre as casas,

onde camélias cor de vinho
se abrem nas coroas de espinho.

II

Vocês do fio nunca entendem
que o inverno é o nosso verão,
e no mais úmido de nós
toda água é sonho, salvação,

o melhor de Jorge Lima
é Zefa em lágrimas, neblina,

meu avô solto no terreiro,
todo molhado, madrugada,
a enxada no punho guerreiro,

é minha terra no dilúvio,
longe de todos, e de tudo.

III

Quando ondas e ondas sucessivas
de chumbo lajeiam o céu,
uma alegria muito cinza
vai-se chegando à cor do mel

dessas terras tão encharcadas
pelas lágrimas atrasadas

de certo deus correndo atrás
de suas ovelhas perdidas,
perdendo todas as demais,

dessas terras que, ardendo tanto,
fervem na face nosso pranto.

IV

Nas regiões de terra velha,
cheias de rochas e cascalhos,
nos rostos e açudes vazios
abrem-se fendas, como talhos

quentes das febres ancestrais,
onde a maleita avança mais,

o sonho de égua sobre a serra,
de água nas várzeas e nos brejos,
de água afogando pela terra,

duna por duna, este deserto
de Deus, que nunca está por perto.

V

Não grassa aqui o frio da morte;
morre-se em brasa, de estupor,
sob o céu sem misericórdia
deste azul ameaçador;

e nestas dunas, sem camelos,
galopam só os pesadelos;

pisando o pó das esperanças
entre branquíssimas carcaças
dos zebus, o deserto avança:

sob o azul belo mas vazio,
nas areias somem os rios.

VI

Amar o cinza, essa indecisa
cor entre o nada e a escuridão,
a tonalidade imprecisa
do vômito, do último não, 

é amar a sombra nos retratos
e o vôo das moscas sobre os pratos;

é ter piedade do nada,
do chão, da lágrima suja,
do pardal morto na calçada;

é amar, também, aquele incerto
céu de chuva sobre o deserto.

VII

Aqui, o céu seria um mar,
mar de águas doces, cristalinas,
em cujas margens um pomar
florescesse sob as neblinas

e o sol celeste só seria
fotossíntese da alegria;

nestas águas celestiais,
iluminadas por relâmpagos,
deusas das chuvas, as vestais,

anjos-da-guarda dos vaqueiros,
lavam as asas nos terreiros.


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