Machado
de Assis
CANÇÃO
DE PIRATAS
1894,
julho
Telegrama
da Bahia refere que o Conselheiro está em Canudos com 2.000 homens (dois mil
homens) perfeitamente armados. Que Conselheiro? O Conselheiro. Não lhe ponhas
nome algum, que é sair da poesia e do mistério. É o Conselheiro, um homem,
dizem que fanático, levando consigo a toda a parte aqueles dois mil
legionários. Pelas últimas notícias tinha já mandado um contingente a
Alagoinhas. Temem-se no Pombal e outros lugares os seus assaltos.
Jornais
recentes afirmam também que os célebres clavinoteiros de Belmonte têm fugido,
em turmas, para o sul, atravessando a comarca de Porto Seguro. Essa outra
horda, para empregar o termo do profano vulgo que odeio, não obedece ao mesmo
chefe. Tem outro ou mais de um, entre eles o que responde ao nome de Cara de
Graxa. Jornais e telegramas dizem dos clavinoteiros e dos sequazes do
Conselheiro que são criminosos; nem outra palavra pode sair de cérebros
alinhados, registrados, qualificados, cérebros eleitores e contribuintes. Para
nós, artistas, é a renascença, é um raio de sol que, através da chuva miúda e
aborrecida, vem dourar-nos a janela e a alma. É a poesia que nos levanta do
meio da prosa chilra e dura deste fim de século. Nos climas ásperos, a árvore
que o inverno despiu, é novamente enfolhada pela primavera, essa eterna
florista que aprendeu não sei onde e não esquece o que lhe ensinaram. A arte é
a árvore despida; eis que lhe rebentam folhas novas e verdes.
Sim, meus amigos. Os dois mil homens do
Conselheiro, que vão de vila em vila, assim como os clavinoteiros de Belmonte,
que se metem pelo sertão, comendo o que arrebatam, acampando em vez de morar,
levando moças naturalmente, moças cativas, chorosas e belas, são os piratas dos
poetas de 1830. Poetas de 1894, aí tendes matéria nova e fecunda. Recordai
vossos pais; cantai, como Hugo, a canção dos piratas:
En mer, les hardis écumeurs!
Nous allions
de Fez à Catane...
Entrai
pela Espanha, é ainda a terra da imaginação de Hugo, esse homem de todas as
pátrias; puxai pela memória, ouvireis Espronceda dizer outra canção de pirata,
um que desafia a ordem e a lei, como o nosso Conselheiro. Ide a Veneza; aí
Byron recita os versos do Corsário no regaço da bela
Guiccioli. Tornai à nossa América, onde Gonçalves Dias também cantou o seu
pirata. Tudo pirata. O romantismo é a pirataria, é o banditismo, é a aventura
do salteador que estripa um homem e morre por uma dama.
Crede-me,
esse Conselheiro que está em Canudos com os seus dois mil homens, não é o que
dizem telegramas e papéis públicos. Imaginai uma legião de aventureiros
galantes, audazes, sem ofício nem benefício, que detestam o calendário, os
relógios, os impostos, as reverências, tudo o que obriga, alinha e apruma. São
homens fartos desta vida social e pacata, os mesmos dias, as mesmas caras, os
mesmos acontecimentos, os mesmos delitos, as mesmas virtudes. Não podem crer
que o mundo seja uma secretaria de Estado, com o seu livro do ponto, hora de
entrada e de saída, e desconto por faltas. O próprio amor é regulado por lei;
os consórcios celebram-se por um regulamento em casa do pretor, e por um ritual
na casa de Deus, tudo com a etiqueta dos carros e casacas, palavras simbólicas,
gestos de convenção. Nem a morte escapa à regulamentação universal; o finado há
de ter velas e responsos, um caixão fechado, um carro que o leve, uma sepultura
numerada, como a casa em que viveu... Não, por Satanás! Os partidários do
Conselheiro lembraram-se dos piratas românticos, sacudiram as sandálias à porta
da civilização e saíram à vida livre.
A
vida livre, para evitar a morte igualmente livre, precisa comer, e daí alguns
possíveis assaltos. Assim também o amor livre. Eles não irão às vilas pedir
moças em casamento. Suponho que se casam a cavalo, levando as noivas à garupa,
enquanto as mães ficam soluçando e gritando à porta das casas ou à beira dos
rios. As esposas do Conselheiro, essas são raptadas em verso, naturalmente:
Sa Hautesse aime les primeurs,
Nous vous ferons mahométane...
Maometana
ou outra coisa, pois nada sabemos da religião desses, nem dos clavinoteiros, a
verdade é que todas elas se afeiçoarão ao regime, se regime se pode chamar a
vida errática. Também há estrelas erráticas, dirão elas, para se consolarem.
Que outra coisa podemos supor de tamanho número de gente? Olhai que tudo
cresce, que os exércitos de hoje não são já os dos tempos românticos, nem as
armas, nem os legisladores, nem os contribuintes, nada. Quando tudo cresce, não
se há de exigir que os aventureiros de Canudos, Alagoinhas e Belmonte contem
ainda aquele exíguo número de piratas da cantiga:
Dans la galère capitane,
Nous étions quatre-vingts rameurs,
mas
mil, dois mil, no mínimo. Do mesmo modo, ó poetas, devemos compor versos
extraordinários e rimas inauditas. Fora com as cantigas de pouco fôlego. Vamos
fazê-las de mil estrofes, com estribilho de cinqüenta versos, e versos
compridos, dois decassílabos atados por um alexandrino e uma redondilha. Pélion
sobre Ossa, versos de Adamastor, versos de Encélado. Rimemos o Atlântico com o
Pacífico, a via-láctea com as arejas do mar, ambições com malogros, empréstimos
com calotes, tudo ao som das polcas que temos visto compor, vender e dançar só
no Rio de Janeiro. Ó vertigem das vertigens!
Machado
de Assis
CANÇÃO
DE PIRATAS
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