domingo, 17 de julho de 2016

Na alvura dos ossos ainda há brilho, Palestina...

Poema de Jonatas Onofre


Na alvura dos ossos ainda há brilho, Palestina
Percorrerei mais esta noite de ogivas
o céu deixando pender os membros de todos os mutilados, acenos para sempre capturados num adeus,
o céu recoberto de explosões e alarmas,
o céu que nunca mais será um sorriso nos olhos da menina de Gaza
Percorrerei mais esta noite de caça-mísseis
procurando palavras que se confundem nas placas de identificação dos cadáveres, que perdem o brilho na confusão branca dos dentes de leite numa pilha de crianças
As manchetes deitam véus de vergonha em toda primeira página enquanto o rosto da menina de Gaza, lívido e doloroso num pedaço áspero de deserto não tem abrigo contra o vento e todas as navalhas do mundo
A menina de Gaza não é uma estátua, não é um monumento, não é uma torre
A menina de Gaza é o futuro completamente estilhaçado como todo seu corpo
A menina de Gaza é a minha covardia diante dos mares de silêncio que brotavam dos olhos de meninos órfãos
A menina de Gaza é o instante em que todos os televisores de meu país deveriam desintegrar-se: só em louvor da lividez e da dor em seu rosto agora quase azul
de Gaza
nunca chegarão aquelas notícias, ninguém terá seus encontros dominicais perturbados pela fotografia de um corpo sem braços, sem pernas, sem tronco
só rosto e infâncias em putrefação
não vos interessa se os homens marcham sobre o setentrião, se há muito ranger de dentes e veias dilatadas
Eu continuo percorrendo mais esta noite de fósforo branco
mas não é minha pele que queima dentro de casa, meu sangue ainda persegue as trilhas ditadas pelo miocárdio, meus ossos estão guardados sob os músculos e os arrepios
posso percorrer todas as noites de minha cidade, mas há pessoas que não podem mais percorrer suas casas,
há pessoas que sumiram num abraço de escombros
e ninguém ao pé do telefone para saber os últimos comandos, a absurda vontade assim na terra como no arranha-céu assinada sob o sacramento de dólares
Na alvura dos ossos ainda há brilho e deserto, há profecias assegurando que um dia todo esse chão rebentará de aquíferos e verdores
mas hoje:
Palestina absorve as variações de um líquido vermelho,
meninos desconhecem o que é casa
estou desolado em meu cubículo de manhãs
e temo sair dessas paredes para aquela noite de gás venenoso
eu desconheço a menina de Gaza que sonhava com fogos de artifício e não se desesperava percorrendo noites na captura de algo para dizer
A menina de Gaza chorava vendo animais de fogo no céu de seu país, quando seu corpo se partiu e ela não teve tempo de nenhuma anestesia
mas na alvura dos ossos, Palestina, na alvura dos ossos e do sono dessa criança,
há brilho e todas as detonações de um grito que nenhuma bomba poderá calar

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