quarta-feira, 28 de dezembro de 2016

não escrevo como mulher porque não sou mulher

Poema de Marize Castro


não escrevo como mulher porque não sou mulher
sou um destroço que boia. um relato lendário.
alguém que tem a dor nas mãos e negrumes secretos no sexo.
estou secando e ouço gritos.
uma desesperada louçã se anuncia.
— o melhor do mundo é não viver nele.
em um escabelo sento a contemplar uma sede sem fim.
mrs. dalloway, você está ai?
senhora d., posso chorar ao seu lado?
euricléia, quando eu voltar você me lavará os pés?
sra. ramsay, então o farol é isso? só isso?
em contínua tristeza os forasteiros vivem.
hoje dormi com batom nos lábios.
o cansaço era tanto que esqueci que também sou homem.
e não canso. e não choro. nunca.
deslindo-me e me desarrumo porque sou gaveta.
telhado. quase cratera. olhicerúlea.
ah, teseu, qual o tesouro secreto que o pai te revelou?
hades me quer. eu digo não. ainda não.
é urgente falar com tirésias.
ir de uma ponta a outra do tâmisa. sozinha.
com uma alegria insuportável.
em mim, femíneos simulacros:
macabéa, qual o tamanho da solidão dos domingos?
blanche, também já dependi da bondade de estranhos.
cabíria, você me ouve?
choro contigo o sentimento trágico da vida.
clitemnestra assassinou cassandra.
mesmo assim eu a amo.
amo as arestas. o que é subterrâneo:
plutão. dioniso. osíris.
estou respirando e tudo é silêncio.
não deslembro mais. simulo.
já sou pélago.
poço. festim. mosaico.
esmerada forma de arder.

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