sexta-feira, 15 de março de 2019

Li tuas mãos na fumaça de um atentado

Poema de Jonatas Onofre

I

Eu posso ver o corpo destroçado de uma mulher
No chão da praça de Kiev
e ainda achar fácil suster 
na linha da pálpebra as pertubações de uma lágrima.
Estando decodificadas em fragmento:
pedaços de explosivo, vidro, fuligem, papeis de jornal,
cacos de louça. As peças de seu mosaico.
Onde antes um café num fim de tarde, agora a explosão
atravessa uns relógios.
A mulher está mais exata
No meio de todas as coisas mutiladas,
E suas pernas podem intrigar-me.
Arrancariam algum suspiro das vastidões de minha valise.
Maculariam a claridade de meus óculos de grau.
Um carro-bomba nas dobras do meu bolso
Não seria mais absurdo.
Os olhos de cisterna estagnada desta mulher,
vazando-se em brancuras. 
Os olhos de espelho sem refrações desta mulher.
Os olhos desaguando um estranho solo de violoncelo no sangue dela.
Os olhos suplicando uma morte rápida.
Outro carro-bomba, onde há mesmo absurdo nesta praça?
Por esses olhos posso ver os rastros das hemorragias
E saber que o sexo dela não mais pulsará
em alguma mão incauta.
Eles são a tela de uma planície prestes a estuprar-se de bombardeios
Ao mesmo tempo janela de um campo depois da hecatombe do meio-dia
Olhos de nenhuma câmera amadora
Olhos de nenhum sobrevivente, nenhum mutilado suspendendo a perna ausente,
O aceno vazio de um braço a mil metros do corpo
A brigada de incêndio se extraviou nos congestionamentos do centro da cidade
Vinha na contramão da fuga dos refugiados.
Um erro imperdoável.

II

Aprendi os sinais do futuro, pelos ruídos de estática de um velho rádio amador,
Não foi um computador que me deu as coordenadas.
A mulher morrerá agora.
Os olhos desabrocham para todo sempre.
Eu sonhei estar na brigada que se perdeu dentro do povo que fulgia.
Eu ainda estou dentro dos olhos da cadáver.
E arde-me tal clausura.
Li tuas mãos na fumaça de um atentado.
Um erro considerável.
Estar cego é o que há de mais inferno neste hemisfério 
hemisfério da esfera.
Mas posso ver ainda.
Então ao ler tua mão não verei nada.
Só os cegos.
Só os cegos atravessam essa avenida, desviam dos escombros, passam sobre os cadáveres e voltam para nos contar versões desautorizadas do próximo armistício.

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