quinta-feira, 5 de maio de 2016

Paulo Henriques Britto

In: Liturgia da Matéria, 1982, Editora Civilização Brasileira


INSÔNIA

Na noite impertubável,
infinitamente leve
a consciência se esbate,
espécie de semente
sobre um campo de neve
neve macia e negra
intensamente morna
onde o tempo se esquece 
na inércia indiferente
das coisas que só dormem

onde, alheia ao mistério
de tudo ser evidente,
inteiramente encerrada
dentro do espaço exíguo
que é dado a uma semente

inútil como fruta
que não foi descascada
e apodreceu no pé,
jaz a semente aguda
profundamente acordada.


DUAS BAGATELAS

II

Então viver é isso,
é essa obrigação de ser feliz
a todo custo, mesmo que doa,
de amar alguma coisa, qualquer coisa,
uma causa, um corpo, o papel
em que se escreve,
a mão, a caneta até,
amar até a negação de amar,
mesmo que doa,
então viver é só
esse compromisso com a coisa,
esse contrato, esse cálculo
exato e preciso, esse vício,
só isso.


MATERIAIS

A utilidade da pedra:
fazer um muro ao redor
do que não dá para amar
nem destruir.
A utilidade do gelo:
apaga tudo que arde
ou pelo menos disfarça.

A utilidade do tempo:
O silêncio.

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